Anvisa lembra que “a inclusão de uma nova indicação na bula do produto depende da comprovação por meio de estudos”.
Os resultados preliminares de um estudo da Universidade de Oxford que indicam sucesso do uso da dexametasona para reduzir a mortalidade de pacientes com covid-19 devem ser vistos com cautela. O medicamento auxilia em casos graves da doença, mas não ataca diretamente o novo coronavírus e só deve ser usado com orientação médica. No Brasil, uma pesquisa coordenada pelo Hospital Sírio-Libanês só deve publicar os primeiros resultados em agosto.
De acordo com o Hospital Sírio-Libanês, o estudo da Coalizão Covid Brasil começou em abril e recrutou pouco mais de dois terços dos 350 pacientes previstos como participantes. ”São contemplados pacientes que têm síndrome do desconforto respiratório agudo e estão em ventilação mecânica nas Unidades de Terapia Intensiva (UTIs) de 40 hospitais em todas as regiões do país. Os primeiros resultados devem sair em agosto”, disse o hospital.
A pesquisa é apoiada pela farmacêutica Aché, que doou 3.000 ampolas do medicamento. Ao anunciar o estudo em abril, a empresa afirmou que teria dois braços: um grupo usaria a dexametasona e o outro grupo o tratamento padrão da instituição, que não deve incluir o uso de corticoides. O Hospital Sírio-Libanês não respondeu qual medicamento está sendo usado no grupo de controle.
Em nota, a Anvisa (Agência de Vigilância Sanitária) lembrou que “a inclusão de uma nova indicação na bula do produto depende da comprovação por meio de estudos”. “As alegações aprovadas para medicamentos, e constantes nas bulas destes produtos, são definidas de acordo com os estudos desenvolvidos pelos laboratórios farmacêuticos”, diz o texto.
A agência alertou que a “orientação para qualquer medicamento sujeito a prescrição é fazer o uso somente com orientação profissional e dentro de protocolos estabelecidos”.
A orientação visa evitar uma corrida às farmácias, como ocorreu com a cloroquina até a Anvisa limitar o acesso ao medicamento por essa via. Não há comprovação científica de que a droga seja eficiente para tratar o novo coronavírus e pessoas com doenças autoimunes, como lúpus, que fazem uso contínuo da medicação, passaram a ter dificuldades para encontrá-la.
A dexametasona já é usada para tratamentos de doenças inflamatórias, doenças respiratórias, reumatismo e alergias. Pacientes com diabetes – fator de risco para covid-19 – devem tomar cuidado porque ela aumenta a glicose.
O ex-presidente da Anvisa Gonzalo Vecina também chamou a atenção para outros efeitos colaterais dos chamados “antiinflamatórios hormonais”, grupo que inclui a dexametasona. Esse tipo de remédio tende a diminuir a produção do próprio corpo de hormônios “que nos ajudam a regular um conjunto importante de fenômenos biológicos”. O uso da medicação também induz “uma queda de nossas defesas, de imunidade”, de acordo com o sanitarista.
“Potencialmente, essas drogas são mais problemáticas do que a cloroquina, mas são muito potentes, como anti-inflamatórios e já vinham sendo usadas desde o começo da pandemia. Agora veio a confirmação de seus efeitos positivos. Não corra à farmácia para comprar a sua dose – somente deve ser usada em pacientes internados e seu uso sem controle médico é muito perigoso”, afirmou Vecina em coluna no jornal O Estado de São Paulo.
O Conselho Federal de Farmácia (CFF) também “não recomenda a procura por este medicamento nas farmácias, tampouco o seu uso que não seja sob indicação e supervisão especializada em cuidados intensivos”, de acordo com nota enviada à imprensa. O texto ressalta que os resultados positivos observados referem-se apenas a pacientes graves e sob suporte respiratório, “não havendo benefício aparente entre pacientes leves e moderados de Covid-19″.
Como a dexametasona age?
A covid-19 é uma doença sistêmica, que afeta vários órgãos. A presença do vírus desencadeia a chamada “tempestade de citocinas”, uma resposta imunológica do próprio corpo que, se for descontrolada, pode acabar agravando o quadro.
“A pneumonia causada pela covid-19 tem um fenômeno muito frequentemente associado que se chama trombogênese. O processo inflamatório é de tal ordem grande que dizemos que o paciente é tomado por uma tempestade imunológica, pela liberação de muitas substâncias chamadas citocina. Esse paciente sofre uma certa anarquia no sistema imune dele”, afirmou a pneumologista Margareth Dalcolmo, da Escola Nacional de Saúde Pública da Fiocruz.
De acordo com a médica, muitas vezes, as mortes são causadas por complicações decorrentes dessa pneumonia. Uma das complicações é vascular, uma tendência a aumentar a coagulabilidade do sangue. “Os pacientes desenvolvem esse fenômeno que eu chamei de trombogênese. Há vários casos descritos pela literatura, inclusive pelo nosso meio, de pacientes que vieram a falecer por embolia pulmonar e fenômenos de trombose. A pneumonia tem complicações de natureza cardíaca em alguns casos ou renal e exige que o paciente seja colocado em hemodiálise. Ela causa uma disfunção orgânica múltipla que nós chamamos um quadro séptico [infecção sistêmica] que tem todas essas complicações”, afirmou.
A dexametasona trata os efeitos causados pelo novo coronavírus no corpo. Ela não combate o vírus em si. De acordo com o experimento conduzido pela Universidade de Oxford com 6 mil pacientes, o uso do medicamento reduziu cerca de 35% das mortes em pacientes que recebiam ventilação pulmonar mecânica.
Entre aqueles em estado menos grave, que precisavam de inalação de oxigênio suplementar, sem a intubação, a redução nas mortes foi de aproximadamente 20%. Não foi constatado benefício em quadros mais leves, sem suporte respiratório.
O ensaio clínico randomizado ainda não publicado em revista científica e foi dividido: um grupo recebeu 6 mg do medicamento por via oral ou intravenosa durante 10 dias, além do tratamento padrão, e um grupo de controle, o tratamento usual.
A OMS (Organização Mundial da Saúde) comemorou nesta terça-feira (16) os resultados preliminares anunciados pelos pesquisadores. “São boas notícias e congratulo o governo britânico, a Universidade de Oxford e os muitos hospitais e pacientes no Reino Unido que contribuíram para esse avanço científico capaz de salvar vidas”, afirmou o diretor-geral da OMS, Tedros Adhanom Ghebreyesus.
Nesta quarta-feira (17), o diretor-executivo da OMS, Michael Ryan, vez uma ressalva. “Isto não é para casos leves nem para prevenir a doença. Na verdade, esteroides, principalmente esteroides poderosos, podem estar associados com a replicação de vírus, ou seja, eles podem facilitar a divisão e a replicação dos vírus no corpo. Por isso é excepcionalmente importante que esse medicamento seja reservado para casos severos”, afirmou.
De acordo com Ryan, os dados preliminares serão analisados pela OMS para atualizar as recomendações de tratamento da doença.
No Brasil, o presidente da Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI) expressou reação similar. “Todo paciente com covid-19 em ventilação mecânica e os que necessitam de oxigênio fora da UTI devem receber dexametasona via oral ou endovenosa 6mg 1x/dia por 10 dias. Medicação barata e de acesso universal. Dia histórico no tratamento da COVID-19!”, afirmou Clóvis Arns da Cunha, em nota.