Lorena, Lourdes e Vitória: história que resume o poder do Mais Médicos

Atendimento humanizado, cuidado, aprendizado e oportunidades profissionais. Programa duplicou de tamanho desde a retomada e está em 81% dos municípios

Com a chave do carro, ela bate na grade de ferro. Um tilintar que traz boas notícias. “É a Secretaria de Saúde”, diz a médica. De dentro da casa no P Norte, em Ceilândia (Distrito Federal), ouve-se uma voz em ritmo apressado. “É a doutora bonitinha?”, pergunta com forte sotaque nordestino. Logo, Vitória vem abrir a porta. E já cede passagem à doutora Lorena Reis Dias. Desde novembro do ano passado, ela é uma das profissionais que integra o Mais Médicos.

Criar um vínculo com o paciente é super importante. Ajuda demais no tratamento, porque a gente consegue que ele siga as orientações. Com o vínculo, a gente consegue a confiança”

Lorena Reis Dias, profissional do Mais Médicos no Distrito Federal

Sancionado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva em 14 de julho de 2023, o programa já dobrou de tamanho em relação ao início do mandato. Em janeiro de 2023 havia 13,7 mil profissionais. Até o início de setembro de 2024, 26,5 mil vagas estavam ocupadas em 4.544 municípios brasileiros (81,6%). Desses, 1.801 são locais considerados de “muito alta” ou “alta” vulnerabilidade.

AMPLIAÇÃO – A nova lei, aprovada pelo Congresso Nacional a partir de Medida Provisória enviada pelo Governo Federal, criou a Estratégia Nacional de Formação de Especialistas para a Saúde. Ampliou o número de médicos na atenção básica do Sistema Único de Saúde (SUS). A intenção é chegar em breve a 28 mil médicos espalhados por todo Brasil. O número permitirá o acesso à saúde a um contingente de 96 milhões de brasileiros, muitos em locais em que não havia sequer um médico, no meio da floresta, no interior e em locais afastados de periferias.Números nacionais que mostram a retomada e o reforço do Mais MédicosNúmeros nacionais que mostram a retomada e o reforço do Mais Médicos

ROSA CHICLETE – No Distrito Federal, a médica de 31 anos foi visitar uma paciente de 82. Maria de Lourdes Gonçalves espera a “médica bonitinha” confortavelmente sentada no sofá. Sorri quando Lorena elogia as unhas longas da mão dela, tingidas de rosa chiclete. Mas é de poucas palavras. Quem fala por ela é Vitória, a cuidadora que abriu a porta. Lourdes tem quadro de Alzheimer e sinais de demência. Ouve as perguntas da médica e seus comandos, mas fala quase nada. Tem dias que a mente foge. Sintoma próprio do quadro. Vitória diz que, quando está assim, fica difícil sair de casa para levá-la a uma consulta na Unidade Básica de Saúde. E, como a idosa tem dificuldade de locomoção, o deslocamento exige cuidado, tempo e dinheiro.

Por isso, define como “abençoada a doutora paciente e comprometida que vai à casa das pessoas”. Lorena avalia os últimos exames de Lourdes, faz perguntas de rotina e confere os remédios que ela tem tomado. Ao notar inchaço e varizes nos tornozelos dela, sugere que mantenha as pernas esticadas sobre o sofá. “Isso evita o risco de trombose”.

A médica também afere a pressão da paciente. Acha um pouco alta e pergunta como anda a alimentação. “Come de tudo”, relata Vitória. “Até um torresminho de vez em quando”, brinca, o que faz a médica alertar sobre o perigo de consumo de comidas gordurosas, especialmente na idade de Lourdes. A profissional deixa pedido de exames, receita medicamentos, faz a avaliação clínica e pergunta se pode ajudar em algo mais. Lorena aprova o cuidado detalhado. A precaução evita agravos.DTC01416.jpgPresença frequente e cuidado: características do trabalho da atenção primária. Foto: Diego Campos / Secom / PR

Os médicos de família e de comunidade falam que são médicos de gente, porque tratam a pessoa como um todo, no lugar onde está, acompanhando o paciente ao longo da vida”

Wellington Carvalho, diretor do Departamento de Apoio à Gestão da Atenção Primária do Ministério da Saúde

ATENÇÃO PRIMÁRIA – Este é um dos objetivos do Mais Médicos: reforçar a cobertura da Atenção Primária, o primeiro nível de prevenção e acompanhamento. No Distrito Federal, são 162 vagas do Mais Médicos atualmente ocupadas e outras dez em fase de preenchimento, um crescimento de 93 profissionais. Em janeiro de 2023, eram 72.

“Os médicos de família e de comunidade falam que são médicos de gente, porque tratam a pessoa como um todo, no lugar onde está, acompanhando o paciente ao longo da vida. A medicina de família e comunidade é a retomada daquele médico que conhece a família, que viu a pessoa nascer e crescer”, afirma Wellington Carvalho, diretor do Departamento de Apoio à Gestão da Atenção Primária do Ministério da Saúde.

Vitória, por exemplo, insistiu para que Lorena aceitasse ao menos uma banana, já que não poderia ficar para o almoço. Diante da recusa agradecida da médica, a cuidadora prometeu um cardápio especial na próxima vez. “Criar um vínculo com o paciente é super importante. Ajuda demais no tratamento, porque a gente consegue que ele siga as orientações. Com o vínculo, a gente consegue a confiança”, diz Lorena.

“Se o médico te conhece, sabe como falar com você, como explicar o problema, o tratamento. Ele entende como você vive. Então, vai saber prescrever um tratamento adequado à maneira como você vive”, explica Wellington Carvalho.

Lorena ressalta a importância de conhecer a condição financeira e cultural da pessoa, identificar hábitos alimentares que precisam ser mudados para evitar obesidade, diabetes ou problemas cardiovasculares. “Antes a gente tinha uma visão hospitalocêntrica, de medicina centrada na doença. Hoje, a gente traz isso da medicina centrada na pessoa. Avaliamos a pessoa com um cuidado que só na atenção primária a gente consegue”.

A troca extrapola a formalidade de consultórios. Quando participou da cerimônia que anunciava a retomada do Mais Médicos, em julho do ano passado, a ministra Nísia Trindade (Saúde) fez questão de reforçar essa característica. “Voltar com o programa significa contribuir com o compromisso de cuidar do povo brasileiro e das pessoas que sofrem com a falta de atendimento”, resumiu a ministra.Para a ministra Nísia Trindade, o programa contribui com o compromisso de cuidar do povo brasileiro. Foto: Wilson Dias / Agência BrasilPara a ministra Nísia Trindade, o programa contribui com o compromisso de cuidar do povo brasileiro. Foto: Wilson Dias / Agência Brasil

DIMENSÃO HUMANA – Com proposta de capturar o que considerou “a dimensão humana” do trabalho dos médicos do programa quando foi criado, o fotógrafo Araquém Alcântara percorreu 38 cidades de 20 estados. O resultado virou o livro Mais Médicos e foi lançado em 2015. Parte desse registro também ilustrou as páginas de outra publicação: Branco Vivo, lançado em 2017 pelo escritor Antônio Lino. O autor visitou aldeias indígenas, comunidades quilombolas, assentamentos rurais e periferias para acompanhar as visitas domiciliares realizadas pelos profissionais.

O Mais Médicos significa, no fundo, levar aos mais longínquos lugares desse país atendimento decente ao cidadão por profissionais da saúde”

Luiz Inácio Lula da Silva, presidente da República

A narrativa relata encontros entre pacientes e médicos, e como o programa levou saúde às comunidades mais improváveis. “No Vale do Jequitinhonha, eu lembro a relação de uma médica, na zona rural de um pequeno município, atendendo dois irmãos que sofriam de paralisia cerebral. Sem aquele médico ali, como é que podia ser o atendimento a essas crianças de demandas constantes? Ver uma médica no quarto deles dando atendimento personalizado não tem como passar batido”, relatou.

A cena de 2017 poderia facilmente ser reescrita com a história de Lorena, Lourdes e Vitória. “O Mais Médicos significa, no fundo, levar aos mais longínquos lugares desse país atendimento decente ao cidadão por profissionais da saúde. Nós sabemos que não é fácil. Não basta ter médico, é preciso que ele esteja onde as pessoas estão”, disse o presidente Luiz Inácio Lula da Silva no dia do relançamento do programa.

YANOMAMI – Outro exemplo da fala do presidente é a terra indígena Yanomami, em Roraima. Em meados de 2023, eram oito médicos do Mais Médicos para as demandas de saúde desta população. Atualmente, o número quintuplicou. Com a prevenção e o tratamento precoce, caíram os casos de malária e as remoções da Unidade de Saúde em Surucucu para Boa Vista, a 350 km, para onde só se chega por meio aéreo.

A ação é parte de um trabalho maior, integrado, de saúde. Entre médicos, técnicos e nutricionistas na região, há hoje 1,5 mil atuando. No início de 2023, eram 690. O objetivo é que, até o final do ano, 80 médicos estejam atendendo na terra indígena. O mais recente investimento na força de trabalho ocorrerá por meio da Secretaria de Saúde Indígena (Sesai) e da Agência Brasileira de Apoio à Gestão do SUS (AgSUS). Um edital simplificado prevê a contratação de 400 profissionais de saúde. Em agosto, 129 assinaram contrato. Até o fim deste mês, mais 200 serão contratados.Presença do Mais Médicos na comunidade indígena Yanomami em Surucucu (RR). Foto: Min. SaúdePresença do Mais Médicos na comunidade indígena Yanomami em Surucucu (RR). Foto: Min. Saúde

TRABALHAR E APRENDER – Uma das melhorias do atual modelo foi conjugar trabalho e aprendizado. Os profissionais do Mais Médicos se preparam para ser especialistas em medicina de família e comunidade. Os dois primeiros anos são dedicados à especialização. Nos dois seguintes, um mestrado. Ao fim dos quatro anos, o médico é submetido a uma prova de título pela Sociedade Brasileira de Medicina em Família e Comunidade.  Com o título, se torna especialista no tema e reforça o time escasso de profissionais da área. No Brasil, existem mais de 52 mil equipes de saúde da família e apenas 13 mil médicos dessa especialidade.

É um benefício estar trabalhando com uma bolsa que é maior do que uma bolsa de Residência, e você ainda sai com um título. A gente faz 44 horas, sendo que oito são destinadas ao horário de estudo, que a gente deixa para se atualizar e fazer as aulas online”

Lorena Reis Dias

Lorena se prepara para isso. Depois das visitas em domicílio, ela volta à UBS de Ceilândia, região administrativa de maior população do Distrito Federal, a cerca de 25 quilômetros do centro de Brasília. Participa de reuniões para debater casos clínicos, acompanha um grupo de hipertensos e de diabéticos. Integra um grupo de zumba e yoga para pacientes e outro para autistas. Divide com mais quatro profissionais do Mais Médicos o atendimento dos pacientes cadastrados na unidade: cerca de 6 mil pessoas. E ainda resta fôlego para cumprir, toda quarta-feira à noite, a carga horária da pós-graduação, cursada na Universidade de Brasília (UnB).

“É um benefício estar trabalhando com uma bolsa (reajustada este ano para o valor líquido de R$ 12,5 mil) e você ainda sai com um título. A gente faz 44 horas, sendo que oito são destinadas ao que chamamos de ‘horário de estudo’, que a gente deixa, realmente, para se atualizar, para entrar na plataforma e fazer as aulas online”, conta.

Para ela, a formação oferecida pelo Mais Médicos amplia não só o conhecimento como as oportunidades. Além da possibilidade de estudos, há benefícios proporcionais ao valor mensal da bolsa para aqueles que atuam nas periferias e regiões mais remotas e o direito à compensação do valor pago pelo INSS para alcançar o valor da bolsa durante os seis meses de licença-maternidade, no caso das médicas que se tornarem mães.

O resto, resume, é a soma de vocação com paixão. “Eu fui me apaixonando pela atenção primária. A gente tem a oportunidade de acompanhar a família, de ir à casa do paciente e verificar a dinâmica dele. E isso é o mais legal. Isso é o mais gostoso, sabe?”, conclui Lorena. 

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